George Saunders estreou no romance de ficção já colocando um Man Booker Prize, maior prêmio literário em língua inglesa, no currículo, em 2017. O renomado contista texano, aos quase sessenta anos de idade, resolve sair da zona de conforto na carreira (já muitíssimo premiada) para se aventurar na narrativa longa. Não poderia ser mais certeiro.
Ao decidir reconstruir a figura de um Abraham Lincoln destroçado pela morte do filho, Willie, e, enquanto presidente dos EUA, vendo o esfacelamento do país em plena Guerra Civil, Saunders não só ajuda a revitalizar as discussões acerca da história do próprio país em sua personalidade e personificação, como incorpora às personagens — fictícias ou não — nuances ainda mais complexas, abrindo caminhos que pairam sobre a própria maneira de contar histórias, de narrar acontecimentos históricos e a formação literária do país.
Lincoln no Limbo foi editado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Jorio Dauster; que possui currículo invejável, tendo traduzido nomes como J.D. Salinger, Ian McEwan, Vladimir Nabokóv e Philip Roth.
Abraham Lincoln, o presidente, pensa em Willie Lincoln, seu filho, adoecido no quarto enquanto recebe convidados para um grande banquete em meio à Guerra Civil americana. Em meados de 1862, os mortos pela guerra somam os milhares e dilaceram uma nação, porém nada é comparável ao pai como a morte do filho, que viria a acontecer pouco tempo depois do banquete. O presidente é incapaz de se conformar com a morte agora. O pai vela o filho, numa inversão da ordem natural da vida. Os laços de proximidade para com os sentimentos de perda e vazio estão tão estreitos, que aceitar o fato torna-se algo inverossímil. Abraham Lincoln trava uma guerra particular.
O processo fundamentado no amor, na dor e na redenção não está única e exclusivamente atrelado à relação travada entre pai e filho. Os vagantes do limbo se mostram seres muito capazes de tudo, até de arriscarem a confortável e cômoda posição de espera que se encontram há décadas para ajudar uma criança que não suporta ver o sofrimento do pai.
O limbo contradiz o silêncio quase perfeito de um cemitério em dia de velório, imagem tão simbólica à mitologia da morte. Habitado por muitos errantes, todos estão em busca da volta ao corpo. Alguns esperam despertar da “caixa de doente” em que foram colocados e retomar a vida de forma frugal, outros esperam a oportunidade exata para um regresso triunfal. O amor póstumo entre pai e filho os coloca numa nova posição. O limbo não é lugar para crianças, que não sabem seu lugar no mundo e tampouco podem se defender. Enquanto Willie ali permanecesse, o pai jamais se reconciliaria com a vida e a morte. Somos introduzidos às personagens do limbo, todas performadas com aquilo que deixaram escapar em vida.
Hans Vollman, Roger Bevins III e o Reverendo Everly Thomas são três dos vagantes que tomam a iniciativa de ajudar Willie a encontrar seu caminho. Particulares em suas deformações, mas comuns na comoção. Crianças não suportam o limbo. Crianças não entendem o equilíbrio entre corpo e espírito para poderem se adequar a situações tão impertinentes.
George Saunders assume a polifonia de um espaço caótico para construir seu primeiro romance. A história de amor, perda e superação é montada a partir de observadores diversos, que entregam recortes das próprias dores e da dor que, agora, constituem pai e filho em espaços distintos. Os capítulos curtos, que varrem o limbo incomum ao pensamento ocidental, apresentam circunstâncias tão fantásticas quanto poderiam. As múltiplas vozes se intercalam em meio à narrativa, formando um grande teatro anárquico das almas.
Os relatos descritivos dos contextos formadores da atmosfera em que Abraham e Willie Lincoln estavam inseridos, principalmente no que tange à personalidade quase mitológica de Abraham Lincoln, o presidente que derrotou os Confederados e aboliu a escravidão nos EUA ao fim da Guerra Civil, são dúbios e confusos em sua profusão. Capítulos se alternam sem a preocupação de entregar a imagem perfeita do estadista, insinuando dubiedade até no que tange a cor dos seus olhos, que assumidamente podem ser cinzas ou esverdeados, a depender do relator. Factual ou não, misturados nos breves capítulos dúbios, existe algo mais importante que fisicalidade e posição hierárquica a definir o homem que foi Abraham Lincoln.
Willie ascende para o limbo (ou bardo, segundo o budismo tibetano), lugar que as “almas” errantes permanecem à espera do regresso ao corpo. O amor entre pai e filho não se ressente em ainda despertar a comoção de uma criança disposta a entender e aliviar o sofrimento do adulto, que volta todo o tempo à capela e abraça o corpo inerte do filho. Uma vã tentativa de consertar o estrago feito pela morte.
A vontade do pequeno Willie é a força-motriz para que os vagantes aceitem sua condição de uma vez por todas. Da mesma forma, a força dos vagantes ajudam o então presidente, com o sangue de milhares nas mãos, assumir os riscos de fazer aquilo que é certo. Continuar a guerra não é mais uma opção, é um dever.
Não existe cura.
George Saunders não parece se preocupar com o fechamento do romance como algo moralmente redondo, com sentido fabular completo. Tão difuso quanto os vagantes que perpetuam o livro até sua conclusão, muitas pontas soltas permitem ao livro um sentimento de inesgotabilidade. Os pilares: amor, dor e redenção, são apenas o começo de uma estrutura que, se surpreende e choca pela velocidade e polifonia, emociona por tudo aquilo que entrega. Os recortes dão a entender traços. Há de se criar estratégias próprias para organizar e reagir aos dados pilares fundamentais e, até mesmo, para uma abordagem mais concisa da personalidade de Abraham Lincoln e o valor dos questionamentos intrínsecos a ele naquele fatídico dia de abril, enquanto velava o corpo do filho. A história, afinal, é escrita por vultos e neles permanecemos como perpetuadores. Ao pesquisar fatos e uni-los à ficção, Saunders mostra que boa parte do juízo de valor da história é dado através da boa vontade para com as próprias convicções e impressões tomadas aliadas às convicções inerentes a persona. Impossível saber, sem conferência severa, quais relatos se misturam à ficção proposta por Lincoln no Limbo. O que há, como certeza, é a ideia de que os vultos formados em torno das personagens exibe um ambiente hostil, num país desigual dividido por questões humanitárias básicas, vivido e liderado por um Lincoln preso no trauma.